A Quinta do Paço de Valverde e a Igreja

 

Comunicação do historiador Manuel Branco

A Quinta do Paço de Valverde e a Igreja

O historiador Manuel Branco enunciou como propósito da sua intervenção «ajudar a perceber a valia patrimonial» da Quinta do Paço de Valverde, centrando-se «nas coisas mais antigas que lá estão», especialmente no património edificado, realçando que «o que ali tem muito interesse é o conjunto».

«O que é que sabemos daquela propriedade de duzentos e qualquer coisa hectares em relação à Igreja?», perguntou. Não havendo datas precisas sobre quando a propriedade passou a pertencer à Igreja, «sabemos que ali pelo final do séc. XIV, no tempo do bispo Dom Martinho III, (…) já era da Igreja.» «Ali por 1462, seguramente já era um sítio onde os bispos iam passar tempo», «já é Paço dos Bispos», como atesta um documento ali assinado por D. Vasco Perdigão, bispo que fundou os conventos do Espinheiro e de Santa Clara.

«Sabemos também por alguma documentação, embora esparsa, que nos bispados (…) de D. Afonso de Portugal, bispo desde 14854 a 1522, e do bispo que se lhe segue, que é um filho do rei D. Manuel, o Cardeal-Infante Dom Afonso (que, aliás, tinha nascido em Évora, e que vai ser o último bispo de Évora), fizeram obras por lá». Já existia um pequeno Paço, uma «capela palatina», que podemos datar do final do bispado de D. Afonso de Portugal, uma capelinha junto à cerca, na zona do horto, e «uma casa de fresco notabilíssima, (…) construção lindíssima e aprazível sobretudo no Verão», da «primeira vintena do séc. XVI».

 

«O que depois vai ser relevante é com o primeiro arcebispo da cidade», o Cardeal D. Henrique, que substitui o irmão – D. Henrique deixa o arcebispado de Braga, «onde se intitulava Primaz das Hespanhas»; «de arcebispo de Braga não pode descer para bispo de Évora, e é isso que leva D. João III, o irmão, a pedir ao papa que passe Évora também para arcebispado. É com D. Henrique que é fundado o pequeno Conventinho», cuja construção está pronta em finais de 1544, incluindo as três grandes pinturas de Gregório Lopes, o pintor régio mais importante da época, sendo nessa data inaugurado, «com uma grande festa que é dada em Valverde, onde vai a Rainha Dona Catarina, mulher de D. João III». «O arquitecto… ainda discutimos muito, muito, mas na verdade é quase difícil que não seja o Miguel de Arruda, porque trabalhava nesses anos» para D. Henrique, como atestam documentos de pagamento a si dirigidos. Outros nomes de arquitectos da época têm sido indicados, «mas é mais provável que seja o Miguel de Arruda. Estamos à espera de encontrar um documento que nos diga isso mesmo, para ficarmos com o problema resolvido (…). Chamamos-lhe habitualmente “o Conventinho” porque ele de facto era pequeno e, se começarem a imaginar, também adivinham com quantos frades ele funcionava: como na história da Igreja, quase todos os conventos são fundados por 12 frades, à similitude dos 12 apóstolos».

«A igreja é, de facto, uma obra-prima, é talvez (…) a obra-prima da nossa arquitectura do Renascimento – não sou eu que digo, são muitos historiadores de arte». A sua concepção é reveladora do conhecimento dos tratados de arquitectura que começavam a ser feitos, na esteira dos tratados de Vitrúvio. «Seguramente quem desenhou, quem planeou Valverde conhecia isso, absolutamente». «A planimetria (…) é uma obra de arquitecto, é quase um estudo matemático», com elementos de geometria acompanhando as ideias arquitectónicas, como acontecia na Europa da época. Muitas outras igrejas e templos desta época têm a planta centralizada, «neste caso, esta igreja é esquisitíssima, (…) o nosso padrão de igreja é de cruz latina, (…) aqui é uma cruz grega, no fundo, os quatro braços são iguais, com a graça de que, aqui, cada um dos braços é um octógono, cada um deles encimado por uma cúpula». No octógono central, uma cúpula mais elevada, que se vê e destaca no exterior à chegada a Valverde, «com esta preciosidade de 12 janelas, tudo à volta do tambor que eleva a cúpula, permitirem que a luz entre uniformemente durante o dia todo», reflectindo-se nas paredes de forma suave e constante, o que não acontece nas igrejas de cruz latina.

A entrada na igreja é feita por um dos octógonos, mas não em posição frontal ao altar-mor: para quebrar a noção do exíguo do lugar e evitar que, ao entrar, de imediato se tivesse a percepção de estar perto do altar, entra-se lateralmente. As pinturas (agora recolhidas no Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo) seguem os momentos da vida de Cristo e são dadas a observar a quem entra no templo segundo uma ordem, com «uma lógica de leitura ao contrário do que é habitual»: primeiro, uma cena do nascimento de Jesus, do Presépio – neste caso, a adoração dos pastores, e não a dos Reis Magos, escolhida por ser este um convento franciscano, «de gente pobre» –, depois, o Calvário e, por fim, a Ressurreição.

Outro aspecto assinalável está no chão, que «reflecte, na prática, o que se passa na vertical de cada sítio (…), como se fosse vista em espelho a estrutura que está em cima – onde é redondo, tem uma coisa redonda, onde é quadrado, o chão faz quadrados –, que era uma modalidade que se estava a praticar já desde o século XV em Itália». É «uma espécie de projecção no chão daquilo que se passa no zénite da capela».

Outros elementos relevantes que encontramos na Quinta do Paço de Valverde: o pequeníssimo claustro do Conventinho, também já exemplo do Renascimento, o que se nota pela ausência de contrafortes na estrutura, típicos das épocas anteriores; a capela do pátio Matos Rosa, com referências do cruzamento do Gótico final com o Manuelino; o portal do pátio, que é também da mesma época – a capela e o portão do pátio são obras do tempo de D. Afonso de Portugal neste passal dos Arcebispos; a capelinha no horto, já mencionada, «que tem aspectos muito parecidos com a capelinha de Garcia de Resende» no Convento do Espinheiro; dois «pequenos esconderijos, pequenos sítios de meditação dos frades (…); a tal capelinha que podemos datar do princípio do século XVI (…); e obras que vai havendo ao longo do tempo», como uma capela também na zona do horto, do tempo do arcebispo D. João Coutinho, de meados do séc. XVII, «obras do D. Simão da Gama (ainda parente de Vasco da Gama), arcebispo de Évora», em especial na zona da portaria, com um seu emblema, «e o lago monumental da época do D. Domingos de Gusmão, final quase do séc. XVII, mas que é profusamente ornamentado e melhorado já no séc. XVIII, com este aspecto notável que de facto tem, e o aqueduto, também da época do D. Domingos de Gusmão, que abastece o complexo».

 

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