Sobre a defesa do Património

Categoria: Comunicados
Publicado em 01-04-2011
Escrito por Direcção
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Em 16 de Novembro de 1919 foi formalmente fundado o Grupo Pro-Évora. Até hoje, somam-se noventa anos de actividade em defesa do património e de valores culturais da cidade de Évora.

Que sentido tem hoje a existência de um Grupo com estas características, quando o Estado, por meio de ministérios, delegações regionais, institutos específicos, autarquias locais e instrumentos de planeamento de diversa ordem, chamou a si as funções de preservação e valorização do património?

Sabendo que os contextos políticos, institucionais, sociais, económicos… sofreram alterações profundas e continuadas nestas nove décadas, quer em resposta a necessidades e interesses diversos (frequentemente marcados por imediatismos), quer por influência de contribuições teóricas que pretenderam solucionar novos problemas, a experiência histórica de um Grupo de defesa do património pode e deve constituir uma afirmação de estabilidade e de ponderação nos processos de decisão que marcam a vida da cidade. O modo como a actividade política tem sido praticada, frequentemente marcada por critérios eleitoralistas e imediatistas e tantas vezes recorrendo a personalidades exteriores às preocupações patrimoniais, reforça esta valia de um tal Grupo.

Considerando o assunto de outro ângulo, tem-se verificado, nos últimos anos, que a inexistência de grupos de defesa do património conduz a que as intervenções cívicas sejam muitas vezes dirigidas a casos específicos, criando-se movimentos isolados e efémeros, extremamente dependentes dos meios de comunicação social e palco de manobras político-partidárias; não só a sua eficácia fica, por vezes, comprometida, como, outras vezes, as causas são desvirtuadas. Nesta perspectiva, as associações de defesa do património podem ser uma referência da consciência cívica e, enquanto tal, uma garantia de participação mais eficaz dos cidadãos nos processos de decisão.

No caso de Évora, constata-se que não existe, da parte das instituições locais, com especial referência para os representantes do Estado, nenhum conjunto de princípios que tenha em consideração a especificidade da história da defesa do património da cidade. Tem sido apanágio do Grupo Pro-Évora, nas acções que tem empreendido, a afirmação e a assumpção de continuidades axiológicas, no quadro de um conjunto de princípios de salvaguarda e de valorização patrimoniais.

O Grupo Pro-Évora tem procurado pautar as suas intervenções por critérios que valorizam a partilha nestas tomadas de decisão, onde o interesse pela vida da cidade e dos cidadãos é prioritário e se encontra com a defesa e preservação dos valores patrimoniais. São estes valores a garantia de identidade que dá especificidade, não só ao Centro Histórico, mas à vida da cidade no seu todo. Desde a sua fundação que a história do Grupo nos ensina a necessidade de independência face aos poderes político-partidários, mas também nos obriga ao diálogo e à intervenção sempre que estes valores patrimoniais são postos em causa. Os exemplos são muitos e variados: a conservação de imóveis, a estética e a limpeza, a manutenção das características emblemáticas e simbólicas dos locais, a defesa de bens culturais imateriais, o modo como o turismo pode ser factor de bem-estar ou de degradação, tudo o que de formas diversas contribui para a vivência de uma cidade em permanente transformação. A tarefa não é simples nem fácil, exige um esforço contínuo e uma atenção constante, acompanhamento científico especializado e, sobretudo, a percepção, nem sempre evidente, do sentir dos cidadãos e da sua responsabilidade perante o futuro.

Foi o que sucedeu, por exemplo, aquando da recente discussão do Estudo de Enquadramento Estratégico do Centro Histórico de Évora, na qual o Grupo Pro-Évora enunciou princípios que entende deverem presidir a qualquer plano de intervenção nesta zona essencial da cidade e que se vieram a manifestar como importantes critérios de avaliação e de decisão sobre os projectos que se pretendam desenvolver. São eles:

1. A valorização do Centro Histórico de Évora implica a conservação e a qualificação da sua condição patrimonial. A espacialidade da cidade constitui a base sobre a qual todas as vivências se desenvolvem e o valor primeiro que identifica e distingue a nossa cidade. É essa a sua matriz identitária. Descaracterizar esta herança histórica significa destruir os elementos essenciais que suportam e afirmam a realidade da cidade de Évora, quer no tempo, quer na relação comparativa com outras cidades.
2. O grande valor para manter viva uma cidade histórica é a sua habitabilidade. Devem ser as pessoas, enquanto habitantes do espaço urbano, o centro das preocupações de qualquer plano estratégico de intervenção. Numa cidade com valor patrimonial, as condições que propiciam a qualidade de vida devem articular-se com a sua matriz identitária, não podendo pôr em causa os valores históricos, estéticos e vivenciais que a caracterizam.
3. O turismo é uma consequência das vivências e das características patrimoniais do Centro Histórico de Évora, não deve ser considerado como condicionador das mesmas, impondo modelos desadequados e desvirtuadores da identidade e da humanidade da cidade. O valor do património, enquanto recurso económico, reside na associação a uma identidade e às instituições que o criaram e lhe foram dando vida ao longo do tempo. Reduzir a realidade patrimonial a um espaço cénico uniformizado e estereotipado, adulterando as vivências dos seus habitantes, constitui uma diluição da sua organização social e cultural e uma forte desqualificação da singularidade histórica da cidade e do seu valor turístico.
4. As intervenções urbanísticas no Centro Histórico não podem ser determinadas por modismos – concepções sem conteúdo e extemporâneas –, causadoras de alterações muitas vezes irreversíveis. Seja em projectos de demolição ou de construção imobiliária, seja em prol de mobilidades e de acessibilidades pretensamente eficazes, a matriz identitária e a vida própria da cidade devem prevalecer.
5. Um plano estratégico de intervenção urbana deve apresentar metodologias bem definidas, articulando os diferentes projectos em função de uma clara ideia de cidade, e assumir mecanismos de controlo público permanente. A unidade e a coerência de um tal plano e a transparência própria de uma política democrática a isso obrigam.

O alheamento dos poderes políticos eborenses em relação a princípios de defesa do património tem custado muito dinheiro, pois têm sido encomendados estudos sem critério ordenador, que se traduzem em propostas eventualmente bem formuladas, mas inoportunas, socialmente fracturantes e inaplicáveis, porque marginais às vivências da cidade.
Das causas do GPE mais visíveis e suscitadoras de polémica na última década (os oitenta anos anteriores estão já, a este nível, analisados) – ordenamento do Rossio de S. Brás, utilização da zona do Templo Romano e do Museu como espaço cénico para a realização de espectáculos, destruição patrimonial na Praça do Sertório, defesa da unidade da Biblioteca Pública de Évora, Estudo de Enquadramento Estratégico para o Centro Histórico, projecto de intervenção no espaço público na zona do Templo e da Sé, no âmbito do projecto Acrópole XXI –, quanto não se teria evitado, em termos de conflituosidade, se existissem princípios claros de defesa do património que enquadrassem as propostas de intervenção?

Todas estas questões evocam a Memória da cidade, que não pode ser adulterada em função de conveniências momentâneas, potenciadoras do Esquecimento, que enfraquece e perturba a consciência identitária da polis. Memória e Esquecimento que, numa outra acepção, João Miguel Fernandes Jorge escolheu como título da exposição que assinala os noventa anos do Grupo Pro-Évora.

Celestino Froes David
Marcial Rodrigues

(Texto do catálogo da Exposição Comemorativa dos 90 anos do Grupo Pró-Évora – Da Memória e do Esquecimento)