Afonso de Carvalho Toponímia Eborense, Séc. XVI Apresentação pelo Dr. Manuel Branco
Afonso de Carvalho
Toponímia Eborense, Séc. XVI
Apresentação pelo Dr. Manuel Branco
- Drª Zélia Parreira, Directora da BPÉ;
- Drª Ana Paula Amendoeira, Directa Regnal de Cultra do Alentejo;
- Dr. Marcial Rodrigues, Presidente do Grupo Pró-Évora;
- Dr. Fernando Mão-de-Ferro, das Edições Colibri;
- Drª Conceição Firmino, em representação da família de Afonso de Carvalho.
- Senhoras e Senhores.
[Este texto é também uma homenagem ao amigo com quem mais horas partilhei nesta biblioteca e no Arquivo Distrital, em busca de notícias novas em documentos velhos.]
Uma primeira fala para agradecer à Drª Conceição Firmino o convite que me dirigiu para ajudar a levar ao fim a delicada tarefa de fazer dos apontamentos do seu marido o livro que hoje aqui é publicado, e digo assim, publicado, no sentido que aprendemos com as determinações régias que só entravam em vigor, não quando os reis as assinavam, mas quando eram lidas em público, solenemente, nas câmaras dos concelhos a que se destinavam. Assim, hoje, aqui é publicado este terceiro volume da saga toponímica que há muitos anos o Afonso de Carvalho iniciou, no âmbito do seu mestrado.
Sempre com a chancela diligente da Colibri, já tínhamos, de Junho de 2004 e de Outubro de 2007, os volumes que estudam a toponímia eborense dos séculos XIV e XV, respectivamente. E agora mais este volume para completar a trilogia, momento bom para agradecer o interesse e o apoio que o Dr. Fernando Mão-de-Ferro dispensou a esta obra e a muitas outras que tratam de Évora e do nosso Alentejo.
Évora, depois da construção da muralha quarto-afonsina, em meados do século XIV, foi preenchendo as zonas não edificadas, densificando a malha urbana, apenas deixando pequenas zonas verdes encostadas à muralha, como aconteceu por toda a Europa e Fernand Braudel percebeu olhando com a bitola da longa duração (1) e Leonardo Benevolo sintetizou referindo que as muralhas urbanas traçadas no final do séc. XIII-meados do XIV não foram saturadas pelas malhas urbanas e só no século XIX acabariam por ser completamente preenchidas.(2)
O século XVI – que é desse tempo que falarei mais, como devo – haveria de introduzir alterações de monta nessa malha urbana, muitas delas com óbvia influência na toponímia, como Afonso de Carvalho assinalou no texto de conclusão deste livro.
Este século começou com evidente proeminência de Évora no concerto das cidade do reino, ao ser-lhe outorgado por D. Manuel, logo em 1501, o segundo foral da Leitura Nova, foral, esse, que haveria de criar um tipo que foi utilizado para muitas outras povoações do reino; mas ainda no ocaso do século XV, perfizeram-se, há dois dias, 502 anos, se criou a misericórdia da cidade de que foram primeiros confrades o rei, a rainha Dona Maria, a rainha velha dona Leonor e o Mestre de Santiago, D. Jorge, bastardo de D. João II.
Os conventos, enriquecidos por doações pias, puderam alargar as instalações à custa da absorção de habitações, às vezes de quarteirões inteiros, como na Graça, no Paraíso, em Santa Clara, em Santa Catarina de Sena, em Santa Mónica, no Calvário, este sacrificando a ermida da Vera Cruz. A confraria do Espírito Santo , depois de absorver os bens de todas as antigas albergarias da cidade, aumentou consideravelmente as suas instalações logo nos primeiros anos do século e, por iniciativa régia, o paço a S. Francisco cresceu e modernizou-se muito; e D. Manuel ainda lançou os alicerces de uma novo palácio que a morte não o deixou concluir, obra que o filho não prosseguiu.
Novas instituições, como a Inquisição e a Universidade com seus colégios aumentaram a malha urbana e acrescentaram grandes volumes e quarteirões inteiros, “cheios” como Camille Sitte já dizia, em 1889(3), dessas grandes construções, em contraposição aos vazios da malha urbana, ponderando sobre os equilíbrios entre os dois.
Os reis que tantas vezes e tão longamente estanciaram na cidade foram impondo medidas higienistas e de embelezamento, autorizando cedências de espaços a nobres – para “nobrecimento da cidade”, como se diz em muitas dessas decisões – ou concedendo ruas a mosteiros ou travessas a particulares, neste caso invocando sistematicamente motivos de saúde e higiene pública e uma ou outra vez a insegurança dos transeuntes e moradores ou, mesmo, a má fama dos frequentadores de lugares esconsos, assim acrescentando a sua acção à do município; este, particularmente na primeira metade do século, foi concedendo inúmeras autorizações de tomadas de chãos, a troco de foros perpétuos, completando quarteirões e densificando e aumentando a malha urbana em mancha, aproximando-a mais da muralha, acautelando, sempre, como acontecia nas doações régias, o desimpedimento do adarve e a reocupação, se necessária, das casas da guarda anexas às portas da muralha.
Exemplifiquemos com uma decisão de D. João III, tomada em 1535, estando o rei na cidade, na qual determinou que a câmara deveria vender aos respectivos foreiros todos os foros de pequeno valor que acabavam por dar mais despesa na sua recolha do que receita arrecadada, tendo ainda a vantagem de os possuidores dos foros, uma vez donos de pleno direito desses chãos, melhorarem as suas condições de habitabilidade e a beleza da habitação, em benefício da cidade. Mas é interessante registar que, acautelando os interesses da comunidade e com vista a garantir fornecimentos essenciais, o rei proibia o alienamento de bens como as caeiras, fornos e moinhos. E, mais, para defender a saúde das finanças municipais, o rei determinou que o dinheiro arrecadado com a venda desses pequenos foros deveria ser zelosamente controlado pelo vereador de sua inteira confiança, Luís Mendes de Oliveira, que o aplicaria na compra de uma herdade que proporcionasse bons dividendos ao município. Registe-se a articulação da vontade régia com os decisores municipais: é do ano seguinte, 1536, o Tombo das Demarcações dos bens do município, que ainda agora é uma preciosa fonte de informação sobre a cidade e que Afonso de Carvalho muito usou para este trabalho.
Nessa longuíssima permanência de D. João III na cidade – aliás a mais longa ausência de um rei de Lisboa, cidade de cujo cais se comandava o império –, Évora torna-se verdadeiramente o lugar do poder, para usar a expressão que Giulio Caro Argan fixou(4) ou, acompanhando Françoise Choay, “o lugar da história”(5). Cremos que como consequência desses mais de cinco anos de estada de D. João III, não sabemos se apenas para glorificar Évora entre todas as outras cidades do reino, se para apoucar a dignidade do Piedoso, se para, subrepticiamente, criticar o excessivo pendor do monarca para se imiscuir no governo da cidade, corria, em surdina, o apodo de “rei de Évora”; mas às claras corria o cognome de “pai da pátria”, aqui entendendo Évora como “pátria”, à maneira clássica, e como na Florença do século XV se chamou a Cósimo de Médicis. Os gracianos de Évora, quase seguramente por sugestão de André de Resende, puseram na epígrafe do friso da fachada renascentista da novel igreja, em agradecimento pelo apoio régio à obra, esse mesmo “Pai da Pátria”; ainda lá está.
D. João III voltaria a Évora em 1544-1545, na que foi a última grande permanência da corte na cidade.
D. Sebastião visitou Évora, mas ficando os serviços centrais em Lisboa; durante o seu reinado, de cerca de uma vintena de anos, Évora beneficiou da acção do seu primeiro arcebispo, o infante D. Henrique, ficando a dever-se à sua acção as fontes monumentais da cidade e a criação da Universidade.
Depois, no arrastado fim de século, com o domínio filipino, foram a afirmação da Universidade e a acção de um arcebispo da casa de Bragança, D. Teotónio, que mantiveram alguma chama de grandeza na cidade – mas já sob a apertada vigilância da Inquisição.
Nas páginas deste terceiro volume de toponímia eborense, perpassam esses ciclos de pujança e de declínio, percebidos pela presença de muitos cortesãos e de gente dos serviços administrativos do município e da igreja e depois da Inquisição e depois da Universidade. Estes últimos, gente da cidade, estão vastamente representados na toponímia; os homens da corte, pelas permanências relativamente breves não se tornavam referências populares suficientemente fortes para que nos actos tabeliónicos, a grande fonte que serviu a Afonso de Carvalho para catar os topónimos, os contratantes ou o tabelião lhes grafassem os nomes para a designação das moradas ou dos bens objecto de contratação. Quando muito, esses cortesãos e outras personagens importantes, quando aparecem nos contratos, a referência mais comum é grafar-se que “ora pousa” na casa de fulano de tal, casa, essa, que lhe fora atribuída pelo aposentador.
Afonso de Carvalho regista e enfatiza, e bem, a tendência para a especialização das ruas, com aglomerados de profissionais em algumas delas, levando, mesmo, à designação de arruamentos com o nome de profissões, como aconteceu por toda a Europa nos finais da Idade Média.(6)
Por outro lado, o autor vai notando e acentuando mudanças no desenho urbano. E da leitura destes três volumes tornam-se evidentes mudanças, e muitas, nos nomes das artérias; estes mudam facilmente, muitas vezes, pressente-se, por quem, sentado perante o tabelião, acha por bem declarar que a rua onde mora é conhecida por nela habitar alguém socialmente proeminente; mas, outro morador pode considerar, na mesma época, que a rua deve ser conhecida pelo nome de outra personalidade que nela habite ou por um topónimo que vem do passado; sinal disso é frequente que artérias sejam denominadas por cinco, seis e sete nomes diferentes (ex.: Travessa do Megué, Travessa do Cordovil..., nomes com que chegaram até nós).
Grosso modo, e sem surpresas, Afonso de Carvalho mostra-nos que dentro da antiga cerca romana habitam os grupos sociais mais privilegiados e ligados à igreja e depois à Inquisição, com a intromissão progressiva de estabelecimentos comerciais na rua que vai da Praça Grande à Sé; entre as duas cercas, ficava a cidade artesã e mercantil e as classes menos favorecidas, num modelo que é comum a toda a Europa medieval e de início da Idade Moderna.
E confirmamos, ao longo deste volume, a assertiva análise de Jean-Paul Lacaze, que citamos: “o espaço intra-muros acaba por levar à densificação da malha urbana. Com essa densificação, os poderes locais são obrigados a criar normas, posturas, sobre as bancas na praça do mercado, sobre as sacadas debruçadas sobre as ruas, sobre o modo de implantar novas casas. São medidas pontuais, de pré-urbanismo.”(7) – disso nos dá Afonso de Carvalho substantivos exemplos, colhidos de documentos.
O século XVI, tratado neste último volume é, sem dúvida o “século de ouro” da cidade, durante o qual muitos momentos e decisões importantes para o reino passaram por aqui. Nesse século acabou a Idade Média e trinfou um novo mundo, um outro paradigma, sendo Évora um pólo dessa mudança.
Na cidade o poder municipal pôde ombrear, se não ultrapassar, na vida quotidiana, o poder e a influência da igreja, sendo um bom reflexo disso a centralidade triunfante da Praça Grande; no alto ficou o castelo, mas sem a importância de séculos anteriores; ficou lá a sede episcopal (e depois arquiepiscopal) e a partir de 1536 a Inquisição que haveria de condicionar nos séculos seguintes a liberdade dos eborenses. Mas para a praça veio a casa do poder municipal e o pelourinho e a cadeia, aqui continuaram os Estáus; se as feiras foram deslocadas para fora da cerca nova, para o Rossio, na praça ficou a dinâmica diária do mercado com a casa de ver-o-peso ali logo no início da Rua do Raimundo; a indispensável fonte pública, que estava naquele canto do Nazareth, foi substituída, em 1537, pela terminal do Aqueduto da Água da Prata que haveria de dar lugar, em 1571, à fonte imperial que ainda agora lá temos; e o infante e arcebispo e cardeal D. Henrique quis marcar a importância da sua instituição no novo “fórum” da cidade mandando demolir a pequenina igreja de Santo Antoninho e construir, de raiz, a grandiosa igreja-salão de Santo Antão.
Ao longo destas páginas detectamos os pilares da superestrutura do poder, dos grupos sociais intermédios, de funcionários e oficiais, dos mercadores e dos comerciantes e dos artesãos, dos fornecedores e distribuidores dos bens do dia a dia e, na base da pirâmide social, quase imperceptíveis na documentação e praticamente ausentes da toponímia, os servidores indiferenciados, os criados, os mancebos, os escravos.
Afonso de Carvalho revelou para nós e para a história da cidade muita gente miúda, personagens secundárias e terciárias, que traduzem nas suas curtas trajetórias o espírito do tempo e do lugar, assim salvas da voragem do tempo e das fragilidades da memória colectiva.
Nestes três volumes que Afonso de Carvalho nos ofereceu um dos aspectos mais relevantes que devemos reter e salientar é a massa documental que eles nos revelam, como suporte fidedigno do trabalho e como fonte para aí descobrirmos muitas pistas para outros e muito variados estudos sobre a cidade. E não é difícil perceber o trabalho imenso de pesquisa que está a montante. O autor alimentou-se sobretudo de documentação original, muita dela revelada aqui em primeira mão, exumada desta Biblioteca Pública de Évora (e nela com relevância para os fundos conventuais e das igrejas), do Arquivo Distrital de Évora (com relevância para o Arquivo da Câmara de Évora, para o fundo da Misericórdia, para os paroquiais, e para os notariais), da Torre do Tombo (com relevância para o fundo da Inquisição de Évora e para as Chancelarias régias) e do Arquivo do Cabido da Sé de Évora.
Posto isto, fica um desafio: a quem tenha saber e tempo e coragem para prosseguir o estudo da toponímia eborense, talvez em duas fases: uma primeira abarcando os séculos XVII e XVII e o XIX até 1878, data a partir da qual passou a caber às câmaras, por lei, o poder de alterar e atribuir os topónimos urbanos, e uma segunda desde aquele ano ao presente. Remato, repetindo a ideia com que terminei o texto introdutório que vai no livro: esta obra de Afonso de Carvalho, pela sua qualidade e pela massa documental que nos despista passa a constituir-se como indispensável a quem faça estudos sobre a cidade, aí emparceirando com o Inventário Artístico de Túlio Espanca e com os Documentos Históricos de Gabriel Pereira.
Nós, a cidade, estamos-lhe gratos. Ainda uma vez, o meu agradecimento por me terem dado a oportunidade de ficar associado à edição deste terceiro volume Da Toponímia de Évora.
Obrigado.
Évora, 2021.12.09
Manuel J. C. Branco
- Fernand Braudel, Civilização material , economia e capitalismo – Séculos XV-XVIII: As estruturas do quotidiano: o possível e o impossível, Tomo 1, Lisboa, 1992, p. 428.
- Leonardo Benevolo, A Cidade e o Arquitecto, Lisboa, Ed. 70, [1984], p. 18.
- Camille Sitte, Art de Bâtir les villes, 1889, apud Gaston Bardet, L´Urbanisme, Paris, Presses Universitaires de France, 10ª edição, 1983, p. 16.
- Lugares de Poder – Europa Séculos XV a XX, Lisboa, Coordenação de Gérard Sabatier e Rita Costa Gomes, Lisboa, 1998, p. 27-29
- Françoise Choay, O Urbanismo, S. Paulo, Editora Perspectivas, S.A., 5ª edição, 1998, p. 15.
- Charles Delfante, A Grande História da Cidade, Lisboa, Instituto Piaget, 2000, p. 91.
- Jean –Paul Lacaze, A Cidade e o Urbanismo, Lisboa, Instituto Piaget, 1999, p. 33.
Ler mais sobre o tema:
Intervenção do Presidente da Direcção do GPE na apresentação do livro do Dr. Afonso de Carvalho na Biblioteca Pública de Évora, no passado dia 9 de Dez. de 2021.
"Guia de Escultura da Cidade de Évora"
Esta edição bilingue (português/inglês) localiza e identifica cerca de 50 esculturas públicas. Com fotografias de Paulo Nuno Silva, mapas, fichas técnicas e textos introdutórios de Maria do Mar Fazenda, são propostos três percursos temáticos - Percurso Evocativo, Percurso Simpósio ’81 e Percurso (Re)Pensar a Cidade – que dão visibilidade e leitura às peças instaladas na cidade.
Este livro está disponível na sede do Grupo Pro-Évora
"Pela Biblioteca Pública"
Remonta a 1992 a intenção declarada, por parte dos responsáveis pela cultura em Portugal, de dividir a Biblioteca Pública de Évora, uma das mais notáveis do pais. Desde logo o Grupo Pro-Évora iniciou uma campanha de defesa desta instituição, a semelhança do que fizera aquando da sua fundação.
de Celestino Froes David e Marcial Rodrigues
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